Por mim, por você, por elas.

Ericka Moderno Rocha
4 min readJun 18, 2024

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“Mais de 100 crianças são estupradas por dia no Brasil. Elas representam 61% das vítimas. Mas o governo insiste que são “casos isolados” — e espalha desinformação e cultura misógina para minar a interrupção da gravidez prevista em lei.” — Texto e imagens retirados da matéria da Thais Bilenky, para a Revista Piauí

Olha, pra você não perder o seu tempo, já começo esse texto dizendo que sou extremamente à favor do aborto. E que uma decisão do Estado deve ser laica e assegurar, antes de mais nada, a segurança de quem vive nele.

Apesar das estatísticas serem nojentas e assustadoras, não vou falar sobre elas. Não quero. Sou à favor do aborto porque sou à favor das liberdades. Se essa, em específico, não lhe for conveniente, não corresponder aos seus valores, ofender sua religião…Não o faça. As leis não são feitas de forma particular para cada existência e é isso que se espera da vida em sociedade. Minimamente.

Vamos lá, se não é possível evitar que crimes aconteçam, é preciso garantir que a decisão e as consequências sob esses crimes sejam individuais e coerentes com o que é violência. E, ao meu ver, não há violência maior que gerar uma vida que não se deseja como filho, já que parir é muito diferente de ser mãe, assim como ter um marido é muito diferente de ter um parceiro, um pai, um amigo ou um amante.

Sabe, as vidas não são todas iguais, do jeitinho que tá escrito lá na Bíblia. As pessoas possuem livre arbítrio, do jeitinho que tá escrito lá na Bíblia. E as consequências dos pecados, quaisquer que sejam, são resolvidas entre o indivíduo e seu deus, do jeitinho que tá escrito lá na Bíblia. E escrevo deus, nesse texto todo, em letras minúsculas, porque ele é de um jeito pra você, de outro pra mim e pode ser uma força, uma energia, uma luz, um vilão ou pura paz — cada um tem o seu. E todos ensinam a respeitar o outro.

Um filho é uma consequência vitalícia e muito mais profunda que a colocação simplista de ser uma “benção divina”. Depois que deus cria, quem gerencia as existências são os homens – e só por esse princípio já deveria ser garantido que fosse a mulher a decidir sobre o que fazer sobre o seu próprio corpo, tal qual o homem tem totalmente assegurado seu poder sobre o dele.

Depois que me tornei mãe, entendi ainda mais sobre as implicações de se ter um filho e pude me dar conta do quanto a religião, mais especificamente o cristianismo, nos tira um pouco da empatia, da visão de mundo e da nossa capacidade de enxergar fora do viés da benção. O crente é arrogante. Ele se sente superior, merecedor, raça eleita, nação santa. Ele esquece que existem outras muitas formas de enxergar o divino e que não tem nada a ver com a qual ele aceitou como fé e prática. Ele ignora o fato de que ninguém voltou do céu e nem do inferno pra dizer quem tá certo. A crença é individual, intransferível e, sendo assim, não serve de régua para uma nação.

Veja, eu acredito em deus. Eu fui criada dentro da religião cristã, evangélica, sob os ensinamentos, talvez, de um dos pastores mais polêmicos, questionáveis e contraditórios dos últimos tempos (pra não dizer desprezíveis) e mesmo quando me era pregado sobre o quão abominável era o aborto, em toda e qualquer circustância, eu já me questionava: quem é o homem para decidir sobre o melhor a ser feito sem ter experenciado a vida do outro? Quem é o homem a decidir sobre a vida da mulher, de outro ser? O melhor para a vida não é aquilo que consegue equilibrar desejos, expectativas, liberdades e escolhas? O que é essa tal de benção que devemos receber sem nenhuma reflexão, ponderação ou tato? É mesmo algo positivo ou uma forma fácil e impositiva de aceitar todo o bem ou mal que nos acomete?

Existem recortes de classe, de vida e de experiências irreplicáveis a todos os seres humanos. A política é sobre o coletivo, a religião é individual. Ninguém tem o direito de decidir sobre nenhum corpo, mesmo que o seu deus tenha questões sobre o seu, sua conduta ou sobre a sua visão daquilo que é moralmente certo ou errado. Você não é todo mundo. E eu, como cristã, penso que se só deus pode nos julgar, porque insistimos em impor leis por ele? Que legitimam a violência e perpetuam uma lógica de que ser mãe é questão obrigatória mesmo quando não há vontade de assim ser, ou condições financeiras, físicas, psicológicas, sociais? Por que nos impõem a maternidade a todo custo, a qualquer trauma, sob qualquer violência, quando sociedade nenhuma, de nenhuma religião, obriga os homens a serem pais? Que amor seletivo de deus é esse que não consegue discernir contexto? Que vai punir uma mulher e um homem com dois pesos e duas medidas?

Deus não é amor? Portanto, se não há amor, não há Deus. Se há crime, coerção, obrigação, imposição, falta de liberdade, dor, trauma, não há deus. Parem de colocar os terços sobre as trompas, de justificar a morte de mulheres e meninas como se fossem marionetes do plano divino. O prazer sexual foi dado a ambos os gêneros, mas o direito sobre o que fazer com ele só é garantido a um pelo Estado, pela sociedade, por outras mulheres e agora pelas religiões. Paremos de ser hipócritas, vivamos uma fé com razão, viva, aquecida, acolhedora. Nenhum versículo ou literatura cristã justifica, concebe ou torna aceitável um absurdo como esse.

Se deus é por nós, que o Estado não seja contra nós. E que nenhuma fé seja imposta sob a justificativa de salvar a humanidade da ditadura gayzista ou do fantasma do comunismo.

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Ericka Moderno Rocha

Jornalista, blogueira de várzea e designer. Atualmente, criativa e planner. ❤️ Fala comigo! erickamr@gmail.com